Carolina Maria de Jesus em 1960, em foto para a revista O Cruzeiro. Fotos: Henri Ballot / Revista O Cruzeiro
Carolina Maria de Jesus em 1960, em foto para a revista O Cruzeiro. Fotos: Henri Ballot / Revista O Cruzeiro

*Por Luzia Gomes

Um amanhã
Possível realidade
Uma honestidade
Humanidade nua
Um despejo em papéis
Um pedaço da fome
Invadiu
Resistiu
Infiltrou
Corroeu um sistema e foi pra cima
Muito bem Carolina!!!
(Larissa Luz)

I. Desenquadrando existências

A vida e a obra da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus chegam até nós, neste mês de setembro, através da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, no Instituto Moreira Salles (IMS) de São Paulo, com curadoria do antropólogo Hélio Menezes, da historiadora Raquel Barreto, e tendo como assistente de curadoria a historiadora da arte Luciara Ribeiro. Exposições como essa apresentam as possibilidades de diálogos entre a arte literária de autorias negras e os espaços expositivos para além de uma perspectiva biográfica. Pensar a obra dessa autora possibilita ultrapassar a história da sua própria vida, pois, no exercício da sua poética, nas brechas, nos retalhos dos papéis, nas tramas dos bordados desenhados das suas letras, grafadas nas linhas de vários tempos, Carolina Maria de Jesus nos apresenta um retrato do Brasil, enquadrado nos resquícios coloniais e conflitos urbanos.

A exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros é composta de aproximadamente 15 núcleos temáticos, tecidos entre palavras e imagens. Nesta narrativa expográfica, desenquadra-se o enquadramento limitante da estetização da pobreza diante da existência de uma mulher negra e vigora uma Carolina Maria de Jesus que usou colares de pérolas, vestiu roupas elegantes, viajou de avião, apareceu em programa de TV com seus filhos e filha. Acessar essas outras imagens da autora nos move a uma reflexão sobre o poder das imagens e como elas podem nos humanizar:

Tinha esquecido o poder das imagens arraigadas e da linguagem estilosa para seduzir, revelar, controlar. Tinha esquecido também sua capacidade de nos ajudar a dar continuidade ao projeto humano, que é permanecer humano e impedir a desumanização e a exclusão dos outros. (MORRISON, 2019, p. 62)

Subvertendo os cânones brancos, a prosa e a poesia de Carolina é um fundamento epistêmico para pensarmos a sociedade brasileira e percebermos que as desigualdades socioeconômicas e o racismo, por exemplo, que a escritora apontava no século 20, ainda se fazem presentes no século 21. E, diante dessa estrutura sociocultural brasileira, ainda não construímos estratégias concretas de erradicação dessas mazelas do nosso tecido social.

A obra de Carolina também é um patrimônio cultural do nosso tempo, dentre tantos patrimônios possíveis. Não estou pensando aqui patrimônio apenas como uma categoria de Estado na formação das identidades nacionais, mas sim um patrimônio a partir de uma perspectiva do amor, como uma ação que nos possibilita avançar numa luta constante para a liberdade. Pois, como afirmou a poeta Maya Angelou: “[…] eu uso a palavra amor como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por nossas veias”. (ANGELOU, 2018) As escritas de Carolina restituem os corpos considerados “descartáveis” de humanidade, ou seja, descartáveis de memórias, subjetividades, individualidades e suas complexidades de ser e existir no mundo.

II. As Letras de Carolina

As letras de Carolina Maria de Jesus são como as águas que não pedem licença – Carolina entra, arrebenta, inunda, lava e leva. As águas não têm pressa, elas seguem seu curso no seu tempo, dizendo-nos que elas são senhoras de vários tempos nos interstícios entre passado e futuro, desaguando no presente. A prosa e a poesia de Carolina, seguindo o curso e o percurso das águas, ofertam-nos uma constante reconstrução da sua própria existência, num fluxo contínuo do eu para o nós.

As letras de Carolina Maria de Jesus nos remetem, também, ao pensamento da intelectual Carla Akotirene quando afirma: “[…] a língua escravizada esteve amordaçada, politicamente, impedida de tocar seu idioma, beber da própria fonte epistêmica cruzada de mente-espírito”. (AKOTIRENE, 2018, p. 16) Nesse sentido, a obra literária de Carolina desamordaça nossas línguas e contribui para a desmantelação das imagens e memórias de controle opressoras das existências negras. A partir das suas escritas, ela se torna sujeita reflexiva e tenciona o campo da linguagem, nos jogos de poder das letras. Carolina é dona da sua fala, dona da sua existência.

As letras de Carolina Maria de Jesus estão dentro da sua norma de escrita, pois é uma grafia criada “[…] no seu interior, nas vísceras e nos tecidos vivos — chamo isto de escrita orgânica. […]”. (ANZALDÚA, 2000, p. 234) A obra de Carolina desenquadra as palavras, tornando-as organismos vivos, com as quais ela revela as agruras de ser uma mulher negra, pobre, moradora da favela do Canindé, mãe solo, realizando um trabalho de desprestígio social. Porém, é com a sua própria escrita que ela nos diz: a sua existência não se reduzia a essa condição marginalizada, não limitava o seu sonhar, nem o seu pensar a si mesma e ao mundo ao seu redor. É com as suas próprias normas de escrever que Carolina fabula as possibilidades de reinvenção do que a cerca.

As letras de Carolina Maria de Jesus atravessaram o Oceano Atlântico e, no lado de lá, desaguaram construindo diálogos afro-diaspóricos materializados no livro Cartas a uma negra, da escritora martinicana Françoise Ega, radicada na França. A obra de Carolina faz parte de um universal entre os vários universais existentes no mundo. As suas palavras acolheram outra autora e possibilitaram que ela também se tornasse sujeita reflexiva de si a partir da escrita em diálogo com as letras de Carolina.

Pois é Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irmãs. Todos leem você por curiosidade, já eu jamais a lerei; tudo o que você escreveu, eu conheço, e tanto é assim que outras pessoas, por mais indiferentes que sejam, ficam impressionadas com as suas palavras. (EGA, 2021, p. 5)

Carolina Maria de Jesus é uma escritora do nosso tempo. Sua obra, além de seguir nos fazendo pensar a sociedade brasileira com todas as suas desigualdades sociais, é um patrimônio cultural afro-brasileiro que deve ser revisitado constantemente. A partir disso, é tarefa primordial desenquadrar nossos olhares sobre a vida, a prosa e a poesia de Carolina e, para isso, a exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros propõe e nos instiga a perceber essas outras tramas existenciais da escritora. Lembremo-nos de Carolina a partir das suas palavras: “Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida”.

Disco Quarto de despejo, 1961, de Carolina Maria de Jesus. Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / Acervo Instituto Moreira Salles
Referências

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
ANGELOU, Maya. Mamãe & eu & mamãe. Tradução de Ana Carolina Mesquita. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. In: Revista Estudos Feministas, p. 229-236, 2000.
EGA, Françoise. Cartas a uma negra. Tradução Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2021.
MORRISON, Toni. A origem dos outros: Seis ensaios sobre racismo e literatura. Tradução Fernanda Abreu; prefácio Ta-Nehisi Coates. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.


*Luzia Gomes é poeta, feminista negra, museóloga e Professora Doutora do Curso de Museologia na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordena projetos de pesquisa e extensão que versam sobre a arte literária de mulheres negras e a Museologia.

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